sexta-feira, 4 de abril de 2014

Desejo Crónico | Os umbigos à volta da fogueira

in jornal Reconquista, 3 abril 2014

Os umbigos à volta da fogueira

Vou contar-vos a história de um gesto. Um gesto de ausência que, ao abrir o vazio de par em par, deixou que uma presença entrasse e se fizesse corpo. Um corpo de palavras, que também esmaga e impressiona. O gesto surgiu no contexto do projeto “Um Diário da República”, realizado pelo coletivo kameraphoto e materializado num excelente conjunto de dez fotolivros que documentam uma década de transformações em Portugal, das mais subtis às mais visíveis. Sandra Rocha, uma das fotógrafas envolvidas, selecionou as suas imagens, não para gizar uma espécie de “retrato” do país (que é sempre um conceito idealizado, abstratizante e perigoso, porque atua de modo flutuante, sem inscrição no real dos afetos e das experiências pessoais), mas para propor uma espécie de “deriva”, enquanto princípio norteador de todo o projeto, “dando a cada um dos seus membros total liberdade para captar o que quisessem e quando quisessem” (in Ípsilon, 21 de fevereiro, p. 6).
A noção de “deriva” comporta a condição de indecibilidade que Jacques Derrida considera essencial para qualquer decisão, acontecimento ou desejo: o indecidível supõe uma franja de imprevisibilidade, a integração do impossível no escopo desejante (como uma carta: há sempre uma sombra que paira sobre o seu percurso, de mim ao meu destinatário; pode extraviar-se, pode ser rasgada, posso nunca vir a obter uma resposta). Entre destino e errância, afirma Derrida, qualquer decisão ou acontecimento implica uma “destinerrância”. Longe de ser uma condição paralisante e pejorativa, é assim que se cria condições para haver um espaço de liberdade (o tom, nos termos de José Gil) onde afetos e agenciamentos do desejo se podem inscrever.
E eis o gesto: Sandra Rocha tinha as fotografias preparadas para o fotolivro final, mas depois de ler “A Utopia Descobriu o Caminho Marítimo para a Cura” (2013), um ensaio de Luís Pedro Cabral destinado a legendar as imagens, abdicou por completo de quase todas, menos a da capa: “Decidi provocar (a fotografia) e deixar espaço para que quem lesse o livro tivesse a possibilidade de criar as suas próprias imagens de Portugal”. Desistindo das suas imagens (que impregnam o espaço percetivo com signos e prescrições do olhar), permite aos leitores a folga vital para se aventurarem em “destinerrâncias”, com as suas utopias e investimentos libidinais. Contra a obsolescência adiposa do visual (pense-se nos reality shows, esses matadouros adocicados com néon e pornografia de pastiche), fica o texto, o poema épico ressacado que já não se salva de devir náufrago porque ele próprio testemunha o naufrágio da salvação: “Talvez este novo Estado mais não seja que uma segunda via do Estado Novo”, pondera Luís Pedro Cabral. “Talvez decorra um sinistro plano de empobrecimento nacional que nos condiciona a todos, menos os ricos, que estão a salvo. Talvez um dia, tenhamos todos de assinar o relatório desta autópsia.” Ou desta “paz podre”, segundo uma das participantes da Oficina de Leitura do projeto Inscrição. Uma paz carcomida por microtremores que, colocando jovens contra idosos, empregados contra desempregados, lobos devorando lobos com medo de serem eles as presas de amanhã, sucumbe ao espírito da dessolidarização dos nossos tempos, quer a nível privado quer a nível social. É o que Peter Sloterdijk, em “Cólera e Tempo” (Relógio D’Água, 2010, p. 219) descreve como “a situação multi-egoísta”, a amnésia voluntária que nos incita a perder “o sentido das situações comuns”, tornando-nos cínicos e umbiguistas.
“O país onde nada acontece” (cf. José Gil) é um lodaçal de traumas e violências latentes, ressacando da sua própria condição de (in)existência. Entre mordaz ironia e conturbado desalento, o ensaio de L. P. Cabral fotografa este fantasma luso, surfando nos tremeliques de água num “alguidar macroeconómico” (paródia toscamente desencantada dos “mares nunca dantes navegados”), que paira sobre a “desvalorização da pessoa no mercado da individualidade”. A cura para este desfecho cancerígeno é parar de usar o veneno que nos corrói como o único remédio possível. É preciso arrasar com esta força entrópica de austeridades endémicas que fazem da vida um fenómeno impróprio para as pessoas. Portugal não existe sem portugueses. E os portugueses não existem com medo de existir.

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